Laura Lufési estreia em ‘O Agente Secreto’ com maturidade: ‘Não separo arte e política’

Escrito em 06/11/2025
Angelo Cordeiro (@angelocordeirosilva)

Em entrevista exclusiva à Rolling Stone Brasil, a atriz mineira, estreante em longas, reflete sobre sua personagem Flavia, o trabalho com Kleber Mendonça Filho e a importância da memória para o país

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Após circular por várias cidades e festivais do Brasil e do mundo, incluindo o Festival de Cannes e a 49ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, O Agente Secreto, novo filme de Kleber Mendonça Filho (Retratos Fantasmas), finalmente chega aos cinemas brasileiros nesta quinta-feira, 6 de novembro. E a Rolling Stone Brasil conversou com Laura Lufési, atriz que interpreta Flávia, personagem de presença decisiva no longa — que escuta, analisa e dá novo fôlego à narrativa.

Em entrevista exclusiva, Laura falou sobre sua relação com o cinema, a construção de Flávia, o trabalho com Kleber e Wagner Moura, e as trocas com Isadora Ruppert (Ainda Estou Aqui), com quem divide cenas chave. A atriz também refletiu sobre memória, política e o impacto de estrear em um dos filmes brasileiros mais aguardados do ano. Confira a seguir o bate-papo completo:

Poderia começar contando o que a motivou a se tornar atriz e como é sua relação com o cinema?
Desde que me lembro, tenho o desejo de ser atriz. Acho que pode ser algo que vem da vocação, mas também fomentado por ter sido uma criança que foi criada na frente da TV. O ofício do teatro era uma espécie de fuga pra mim. Claro que, com o tempo e maturidade, eu fui entendendo muito mais as complexidades de ser atriz, tanto no campo do sensível, como político, antropológico.

Com uns 17 anos, quando saí do interior para estudar teatro profissionalmente, eu passei a entender a realidade e profundidade da profissão, mas isso não me fez afastar, pelo contrário. Hoje, preciso contar histórias, perspectivas, complexidades da vida e das relações humanas pra me sentir plena comigo mesma, pra sentir que sou quem eu nasci pra ser.

Havia algum filme que te dava medo na infância (ou até hoje), assim como Tubarão causa pesadelos no Fernando [personagem que interpreta o filho de Wagner Moura] no filme?
Eu tinha muito medo de um filme: Xuxa e os Duendes. Quando as bruxas chegavam pra pegar as lágrimas das crianças. Lembro de chorar de medo assistindo em casa, rs.

Existe alguma sessão de cinema que te marcou profundamente? 
Vai parecer mentira, mas foi a de Bacurau. Lembro que assisti no Cine Belas Artes, em Belo Horizonte, [o filme] tinha acabado de estrear, todo mundo falava dele. E na cena em que Carlos Francisco bota pra torar, o público inteiro gritou — foi realmente uma catarse. Foi muito forte porque vivíamos a ascensão da extrema direita no Brasil, eu era estudante de universidade pública. Foi como lavar a alma.

Wagner Moura e Kleber Mendonça Filho no set (Foto: Victor Jucá)

Qual era sua relação com o cinema do Kleber Mendonça Filho antes desse projeto? Já acompanhava o trabalho dele?
O primeiro filme que vi de Kleber foi Aquarius, eu tinha 16 anos. Já me aproximei muito pela força e protagonismo de uma mulher com mais de 50 anos em um filme. Daí passei a acompanhar mais; fui ver O Som ao Redor e os curtas, como Vinil Verde e Recife Frio — que me fez ficar ainda mais obcecada por seu trabalho.

Em Bacurau, eu já vivia a expectativa do filme chegar logo, assim como em Retratos Fantasmas. É engraçado porque, em 2021, eu comentei em um post do Kleber com o Wagner: “Estou aguardando o próximo filme.” E agora aqui estamos, eu no meio desses dois, rs.

Eu realmente sou louca por todos os filmes de Kleber. O que mais gosto é que ele é original e não tem medo de bancar decisões estéticas, narrativas e políticas muito específicas, que vão ser questionadas. Ele tem opinião e ousadia e não abre mão disso. Outra coisa relevante é que eu sempre vi rostos como o meu, como o da minha família, nos filmes do Kleber — então era inevitável um espelhamento de representatividade.

Quando e como surgiu a oportunidade de participar de O Agente Secreto? 
Surgiu através de um trabalho fundamental que é o da direção de elenco — neste caso, Gabriel Domingues, quem faz o trabalho de procurar atrizes e atores e apresentar pro diretor. Tive o axé de ser Gabriel, alguém que não me conhecia mas que busca novos atores e dá oportunidade pra pessoas como eu — que nunca tinha feito um longa. Fiz uma self tape e depois um teste presencial com Kleber, Emilie [produtora], Leo Lacca e Gabriel.

Você já conhecia a Isadora Ruppert? Como foi construir essa parceria em cena?
Eu não conhecia Isadora, eu na verdade não conhecia ninguém pessoalmente, rs. Nós fizemos uma reunião online com o Leo Lacca para passar a cena, pois cada um estava em um estado do Brasil. Agora com um pouco de spoiler: conversamos muito com Kleber que, ali, aquelas duas estão descobrindo esta história tal qual o espectador. Estão juntando as peças do quebra-cabeça. Além de tudo, nosso núcleo é uma quebra de narrativa, de estética e até de encenação. Tivemos uma diária juntas que foi tranquila e emocionante — afinal, era nosso primeiro dia em um set de Kleber.

Isadora Ruppert e Laura Lufési no Festival de Cannes

Kleber é conhecido por criar sets colaborativos, em que o elenco participa ativamente das discussões sobre o roteiro. Que tipo de diálogo você teve com ele durante as filmagens?
Acho que Kleber tem um equilíbrio muito bom entre o que ele deseja ou não pra cena e o que o artista oferece pra ele — que é nossa humanidade, expressividade, nossa presença. Me lembro, por exemplo, que ele me perguntou como eu imaginava a família da Flavia, minha personagem. Eu apresentei o que pensava e ele disse que pensava como eu — mas veja que ele abriu espaço para antes eu me colocar enquanto artista também.

Conversamos sobre como era mais interessante que Flavia fosse uma pessoa que escolhe fazer o movimento contrário do comum de muitas famílias negras historicamente — de enegrecer a família, ao invés de embranquecer (já que eu sou nitidamente um corpo consequente da miscigenação).

Essas coisas são muito caras em um set saudável. Sinto que ele escuta todo mundo e toma sua decisão enquanto artista e diretor. Ele também adaptou minha personagem para ser mineira, como eu. Inicialmente ela seria de São Paulo, mas não havia sentido ou necessidade de adaptar meu sotaque, ainda mais sendo São Paulo uma cidade com gente de toda parte do Brasil e do mundo.

As personagens femininas do Kleber costumam ter uma presença fundamental. Como você definiria o papel da Flavia dentro desse universo?
Pra mim, Flavia tem uma presença e função narrativa fundamental e especial no filme, que está ligada a um ponto de vista e gancho narrativo. Nós vemos parte da história de Marcelo pelo seu ponto de vista. Penso que ela está ali a serviço da história deste personagem. Não é sobre ela, apesar de a atravessar emocionalmente, por ser mãe, historiadora acadêmica e ter uma relação de ancestralidade com Recife. Aquela é a história de Marcelo e, consequentemente, de seu filho.

Penso que atuar é, muitas vezes, tornar sobre o outro, deixar o ego de lado, oferecer sua escuta. Flavia tem esse lugar pra mim. Além disso, ela é alguém que escolhe simplesmente fazer o certo — o que pode ser visto como ato heroico, mas na verdade é apenas ela devolvendo a alguém a sua história.

Onde e em quanto tempo foram gravadas suas cenas? Você chegou a visitar o set que recriava aquela Recife dos anos 1970?
Se não me engano, tive seis diárias espaçadas entre quase três meses. E umas duas vezes estive no set dos anos 70 no Recife. Lá acontecia uma coisa engraçada: a equipe estava tão imersa nos anos 70 que umas duas pessoas demoraram pra me reconhecer ali. “Meu Deus, é você!!” Afinal, era quase como se eu fosse de outro filme, rs.

Tânia Maria, a Dona Sebastiana, em cena de O Agente Secreto (Foto: Victor Jucá)

O filme se passa nos anos 70. Se você pudesse levar algum figurino, acessório ou objeto de cena daquela época pra usar hoje, qual seria?
Eu ia querer a combinação de bobes no cabelo com o “oclinhos” da Dona Sebastiana [personagem de Tânia Maria]. Ela tem o carisma, o look e tem o povo.

Você é o tipo de pessoa que registra e preserva tudo? Ou é do tipo que prefere viver o momento e não tem muito apego a isso?
Por muito tempo eu não fui essa pessoa. Na infância e adolescência, por exemplo, eu evitava ver fotos da minha mãe, que morreu quando eu tinha 3 anos. Não queria que ficassem expostas em casa porque era sempre uma memória de dor e trauma. Acho que isso diz muito sobre um certo diálogo do filme também. Com a maturidade, eu hoje preservo muito isso — fotos minhas quando criança, fotos da minha mãe, pais e avós. Há alguns anos peguei várias fitas VHS de infância e digitalizei. Foi um movimento importante pra mim.

Infelizmente, muitos de nós somos criados pra entender que memória é passado, quando, na verdade, memória é presença. O esquecimento ou apagamento só tende a gerar maiores feridas e consequências com o tempo — tanto no sentido emocional e individual quanto no sentido político e coletivo. Hoje faço as pazes com o luto e o vácuo da presença da minha mãe me lembrando dela, mantendo sua memória viva, vendo ela em mim.

Apesar da Flavia viver em um tempo distinto do Armando/Marcelo, você ainda atua com o Wagner Moura. Mas você conseguiu encontrar os outros atores em algum momento do processo?
Sim, lembro da primeira vez que cheguei no set para fazer prova de figurino e caracterização, encontrei o núcleo do Edifício Ofir. Conversei com Hermila Guedes — fingindo costume — por um bom tempo, falamos das personagens. Ela é muito especial e sensível. Sou apaixonada por ela desde O Céu de Suely. Neste dia também vi uma cena emblemática: Dona Tânia com seu cigarro encostadinha na hora do almoço da equipe, bem como na sua primeira cena do filme. Kleber me apresentou ela rapidinho e já dava pra ver que ela é demais.

Moradores do Edifício Ofir (Divulgação/Vitrine Filmes)

Como foi observar de perto o trabalho do Wagner Moura? Ele participava ativamente do processo coletivo no set?
Eu conheci Wagner na hora de gravar a cena. Nós nunca ensaiamos de fato. Claro, repetimos alguns takes, mas foi uma escolha da direção e nossa também para que tornasse aquilo o mais orgânico e realista possível. Não era necessário — e nem bom — que criássemos intimidade naquele primeiro encontro. Isso trazia muitas coisas positivas pra experiência cênica. Lembro de sentir uma culpa enorme durante o diálogo com ele, coisa que sozinha, estudando, eu não acessava.

Sobre Wagner, ele foi sempre muito doce e receptivo. É muito presente e concentrado, o que foi ótimo pra mim, que estava gravando meu primeiro longa — e com ele, rs. No último take, disse a ele que estava fingindo profissionalismo, mas estava muito emocionada de estar ali com ele, em cena. Daí ele falou coisas lindas e fofas das quais não me lembro de nada, pois deu pane no sistema, rs.

Quando assistiu ao filme pela primeira vez e se viu na tela, o que passou pela sua cabeça? 
A primeira vez que assisti foi em Cannes e, honestamente, eu só me lembro de flashes deste dia e do filme. Parecia que tinha uma neblina na minha frente, acho que eram as lágrimas sendo seguradas durante quase 3 horas de filme. Era uma emoção que tomou conta de todos nós, não consegui elaborar nada. Depois, quando vi em Recife, até brinquei com uma amiga que parecia que eu estava vendo pela primeira vez, principalmente minhas cenas. E aí fiquei feliz e satisfeita com meu trabalho.

Laura Lufési estreia em ‘O Agente Secreto’ com maturidade ‘Não separo arte e política’ (Foto: Rafael Berezinski)

E o que mais te impressionou em O Agente Secreto?

Além de ser cinema de primeira qualidade, me impressiona como todos os departamentos são altamente competentes: direção, produção, direção de arte, figurino, caracterização, montagem, som… Tudo é impecável. Mas claro, sempre com a assinatura de um filme de Kleber.

Existe alguém que você admira na vida assim como a Fátima da Alice Carvalho admirava o pai no filme?
Meu pai também é alguém que admiro muito. Um homem negro, perdeu a esposa aos 33 anos e com uma filha pequena (eu) pra criar. E acho que ele me criou da melhor forma que pôde, tendo sempre como prioridade me dar acesso a uma educação de qualidade, que ele e a família não tiveram.

Você conseguiu acompanhar a reação do público, seja nas sessões internacionais ou no Brasil, às suas cenas? O que mais te chamou atenção nessas exibições?
Bom, vou tentar ter cuidado, mas vai ter certos spoilers. Acho que tem um primeiro choque na primeira cena em que aparecemos (eu e Isadora), por motivos óbvios — tira o espectador do eixo ao mesmo tempo que as coisas se assentam, ganham contorno. Outra reação relevante é o final do filme, que tem dividido as sensações.

É um anticlímax e algumas pessoas sentem incômodo — o que pra mim é positivo e acho que Kleber provocou o que queria. Não tem melodrama, não tem cor, é cru, mas tem sentimento, e isso foi pensado, direcionado. É brutal e faz sentido que seja. Acho que este final reflete sobre aquilo que é perdido, arruinado mesmo quando lutamos, sem romantismos. Concretamente, é a vida seguindo. Simbolicamente, são muitas outras coisas. Nada nesse filme é por acaso.

Laura Lufési estreia em ‘O Agente Secreto’ com maturidade ‘Não separo arte e política’ (Foto: Brenda Quevedo)

Depois dessa experiência, o que você leva para si, tanto como artista quanto como pessoa?
Eu comecei em um lugar que talvez fosse a meta de uma carreira conseguir alcançar: trabalhar com ética, com pessoas que admiro e em um projeto em que acredito. Espero conseguir manter isso pra mim — pessoa e artista — pois não separo as duas coisas. E sei que é difícil, porque muito não depende só dos meus desejos e ações.

E não digo isso em relação ao sucesso do filme, que de fato é maravilhoso, mas tem a ver com o fato de, mesmo eu sendo uma atriz que estava ali fazendo seu primeiro longa, eu tive condições de trabalho, respeito, parceria, além de acreditar artística e politicamente na obra. Então emano que isto seja um prenúncio pra minha trajetória.

Você diz que procura manter os pés no chão mesmo após um trabalho de grande visibilidade. Que tipo de escolhas pretende fazer a partir daqui, pensando em carreira?
Essas escolhas não dependem só de mim, também dependem do que chega até a mim. Digo de manter os pés no chão pois, na nossa profissão, às vezes pegamos um trabalho ótimo e passamos meses desempregados — aconteceu comigo mesmo. É difícil manter uma estabilidade. Mas penso em fazer escolhas, dentro do possível, que me tragam uma diversidade de linguagens e personagens, e que contem histórias que me são caras.

Donna Haraway diz que “importa que histórias fazem mundos e que mundos fazem histórias”, e isso me guia também como ética de trabalho. Além disso, as atrizes que mais admiro são aquelas que conseguem se adaptar a diferentes linguagens (cinema, teatro, TV, streaming), atmosferas, temperaturas, tempos e personagens. Quero, como atriz, ser capaz de ultrapassar meu ego e limitações/julgamentos internos para acessar as complexidades psíquicas e das relações em sociedade.

Laura Lufési estreia em ‘O Agente Secreto’ com maturidade ‘Não separo arte e política’ (Foto: Brenda Quevedo)

Kleber e Wagner são artistas muito politizados, e isso transparece nos filmes que fazem. Qual é a sua relação com a política? Você se vê ou gostaria de ser vista como uma artista politizada também?
Não separo uma coisa da outra. Nem conseguiria — pra mim é algo intrínseco. Relaciono diretamente meu trabalho como artista com a política. Eu sou um corpo político quando saio na rua. Sou atravessada pelo gênero, pela minha sexualidade, raça e profissão. Tudo isso anda junto comigo, nas minhas escolhas, opiniões, e me leva a ser abertamente de esquerda.

E mesmo que eu não estivesse disposta — como estou — a me engajar nisso, já seria um ato político ocupar os espaços que ocupo. Mas, por hoje conseguir acessar lugares que minha família nunca conseguiu — como educação e espaços de elite cultural, por ter liberdade para viver minha sexualidade de forma mais livre — sinto que tenho um compromisso com os que vieram antes de mim e lutaram por esses espaços.

Depois da passagem por festivais e agora com o lançamento nacional, que tipo de reação você espera do público brasileiro ao assistir O Agente Secreto?
Nem parece que não estreamos ainda — o filme rodou tantos lugares no Brasil e no mundo. Mas sem dúvida, agora com a estreia nacional para o público geral, as reações vão ser ainda mais múltiplas, e acho isso ótimo. Acho sempre mais interessante um filme que traz múltiplas e diferentes opiniões, debates. Isso é fundamental em qualquer obra. Acredito que o público brasileiro vai torcer pelo filme e por sua carreira em premiações. Isso é o mais fundamental — o interesse do público faz com que nosso cinema seja cada vez mais valorizado.

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